Kosta de Alhabaite

Nortenho, do Condado Portucalense

Se em 1628 os Portuenses foram os primeiros a revoltar-se contra o domínio dos Filipes, está na hora de nos levantarmos de novo, agora contra a corrupçao, o centralismo e colonialismo lisboeta!

Foi o primeiro jornal português. E ajudou D. João IV a consolidar o poder em 1640

D.João IV gostava da simplicidade do Alentejo e teria pouca paciência para os enfeites e fausto que os rituais das cortes barrocas exigiam. A política tem as suas regras, e o trineto de D. Manuel I que nascera destinado a ser o oitavo Duque de Bragança acabaria persuadido a juntar-se ao grupo de revoltosos que, em 1640, quis acabar com o poder de Filipe IV de Espanha (III de Portugal) e a política centralizada do seu valido Conde-Duque de Olivares.
Viviam-se tempos complicados em todos os reinos do velho continente. Desde o primeiro quartel do século XVII que o clima político favorecia o despertar da imprensa, e as gazetas “multiplicam-se por toda a Europa”, como escreve José Tengarrinha na “Nova História da Imprensa Portuguesa”: Primeiro surgiu a de Basileia em 1610, depois a de Frankfurt e Viena em 1615, Hamburgo em 1616, Berlim em 1617, Praga em 1619, Amesterdão em 1620, Londres em 1622. Anos mais tarde é a vez de chegarem a Florença e Roma.
Uma das mais importantes e que mais terá influenciado a génese da patriótica Gazeta da Restauração, foi a “Gazette de France”, que surgiu em 1631, com o alto patrocínio do Cardeal Richelieu, o todo poderoso primeiro-ministro de Luís XIII.
Menos de um ano depois de ser aclamado rei em Lisboa por um grupo de 71 portugueses, El-Rei D. João, o quarto de Portugal, fez saber que concedia “alvará” de publicação a Manuel de Galhegos, “impressor, livreiro” para editar ,“imprimir” e “vender em todos estes reinos e senhorios as Gazetas das novas deste Reino”. Este primeiro periódico português de publicação regular, haveria de ficar conhecido por Gazeta da Restauração. O alvará régio foi concedido a “14 de Novembro de 1641”, como se lê num livro de Jorge Pedro de Sousa, investigador e professor da Universidade Fernando Pessoa.
Ao Expresso, Sousa diz que “muitas notícias da Gazeta portuguesa, à semelhança das notícias da Gazette francesa, que lhe serviu de modelo, apresentavam enquadramentos que se podem considerar propagandísticos”
“O poder régio era constantemente engrandecido e a pessoa do rei sempre enaltecida” pela Gazeta da Restauração. Nas notícias dadas sobre a guerra com os espanhóis, que se mantém alguns anos após a aclamação de D. João como rei de Portugal, “os portugueses venciam todas as escaramuças e batalhas e causavam sempre um enorme número de baixas nos inimigos, mas estes raramente conseguiam fazer o mesmo às hostes portuguesas. Classifico, por isso, a Gazeta como um periódico infopropagandístico”, acrescenta o professor da Universidade Fernando Pessoa.
O nono número da Gazeta da Restauração foi impresso em Julho de 1642 e posto a circular em agosto. Nos dois meses seguintes, Agosto e Setembro, a Gazeta não seria impressa por determinação do rei. A proibição régia visaria sobretudo as publicações gerais, menos regulares, mas foi também foi aplicada à Gazeta da Restauração.
Se entre a pequena nobreza, o povo e alguns mercadores havia numerosos apoiantes do novo poder, parte da grande nobreza permanecia recetiva à ideia da monarquia dual que governou Portugal entre 1580 e o 1º de Dezembro de 1640.

Arrefecimento do clima gerou escassez alimentar

Em Portugal os tempos eram de guerra e crise económica. A Europa sentia os efeitos da Guerra dos 30 anos, que eclodira em 1618 e só terminaria em 1648. Como se isso não bastasse, experimentava-se um período de arrefecimento climático geral, responsável por uma “crescente escassez alimentar”, como explica a historiadora Mafalda Soares da Cunha.
“Numa delicada situação de guerra, o poder régio não estava seguro de ter controlo sobre todas as notícias publicadas, embora os impressos, em princípio, se encontrassem ainda sujeitos às regras da censura prévia estabelecidas na Carta de Filipe II”, escreve Tengarrinha. O problema, é que as folhas impressas eram muitas, e o “aparelho censório” tinha “dificuldades de controlar todos os papéis que apareciam”.


É neste contexto que D. João IV reforça as disposições censórias; o decreto régio de 19 de Agosto de 1642 “visava, assim, não apenas as Gazetas da Restauração, mas sobretudo outras das numerosas publicações eventuais [não periódicas] que se apresentavam impropriamente com a designação de ‘gazetas’ ou de qualquer modo eram assim classificadas”, explica José Tengarrinha na sua “História da Imprensa Portuguesa”.
Dois meses depois de ter sido suspensa, a Gazeta da Restauração, voltou a ser impressa  mas com novas orientações editoriais e novo cabeçalho. Foi assim que surgiu a “Gazeta Primeira do Mês de Outubro de Novas Fora do Reino”, que entrou em circulação a 18 de Novembro. Tal como o primeiro número da Gazeta, impresso em Novembro de 1641, tinha 12 páginas e custava 6 réis.

Numero de páginas ditava o preço

Foram publicados 36 números da Gazeta da Restauração – nas suas várias versões – entre Outubro de 1641 e Setembro de 1647. Pode ter havido mais números, mas foram estes que sobreviveram e chegaram até nós.
“Na Gazeta não há peças de opinião como hoje as conceberíamos. Os periodistas de Seiscentos, na generalidade dos países da Europa continental, viam-se a si mesmos como historiógrafos do presente. A sua principal referência era a escrita da história, o registo cronológico dos factos notáveis da vida dos povos. Por isso, o periodismo emergente foi noticioso por toda a Europa continental”, diz Jorge Pedro de Sousa.
“A análise de conteúdo efetuada à Gazeta demonstrou que somente 1% das peças inseridas no periódico não deve ser classificada como notícia. Algumas notícias, porém, continham passagens opinativas: 3% até à interrupção de 1642; 14% depois, quando a Gazeta se converteu na Gazeta de Novas de Fora do Reino, passando os seus conteúdos a serem quase integralmente traduzidos da Gazette francesa, mesmo os respeitantes a Portugal, como revela um trabalho de Patrícia Teixeira”, explica o professor Jorge Pedro de Sousa.
Sousa considera que este “projecto resultou da iniciativa privada”. Até à data da suspensão dos vários periódicos em 1642, a Gazeta foi seguramente “acarinhada pelo poder régio”. É provável que o tenha sido posteriormente, já que o novo poder “viu na Gazeta um excelente instrumento de propaganda da restauração da independência do reino”, acrescenta Sousa.

D. João IV conhecia o poder da diplomacia e da imprensa

O primeiro rei da dinastia de Bragança gostava de “caçar e de música”, diz a professora e investigadora Leonor Freire Costa, co-autora com Mafalda Soares da Cunha do livro “D. João IV”, da editora Temas & Debates.
No dia da sua entronização, 15 de Dezembro de 1640, desconcertou parte da nobreza por ter trajado com “sobriedade algo modesta, tendo em conta a relevância da ocasião”, lê-se no livro das duas autoras. Esta preferência pela roupa confortável e simples para os padrões das cortes da época, em que fazia “gala” – como diz Freire Costa – tornar-se-ia uma marca da sua “atitude” e forma de estar. Contrariamente ao que as regras do poder real exigiam, o rei gostava de fazer demasiadas refeições acompanhado – em vez de comer sozinho como seria expectável − e de dizer algumas piadas. Mas, se estas características foram vistas como desconcertantes por muitos, o certo é que houve uma estratégia clara de legitimação do novo poder.
Mafalda Soares da Cunha lembra que o trabalho da “diplomacia portuguesa foi notável” para obter o reconhecimento do novo poder junto das entidades políticas estrangeiras e, a nível interno, o rei ou os que o rodeavam terão percebido a importância da imprensa.

O que nos ensina a história sobre jornalismo e política

“Podemos considerar D. João IV como o primeiro governante [português] que percebeu a importância dos escritos impressos”, diz ao Expresso Felisbela Lopes, professora de Jornalismo na Universidade do Minho: O apoio régio às Gazetas era o modo de “controlar a opinão pública na época” – já que o reino vivia tempos em que a crise económica e a escassez de alimentos poderiam fomentar motins municipais.
“O rei e os seus conselheiros certamente conheciam o caso da Gazette [francesa] e perceberam que uma publicação portuguesa com características semelhantes poderia ser benéfica para a propaganda da nova dinastia de Bragança e para a sua legitimação simbólica”, diz Jorge Pedro de Sousa.
Felisbela Lopes lembra que “o passado ensina-nos muito sobre alguns tiques do presente, e este elo umbilical que existe entre o jornalismo e o poder político. Como é que desfazemos este elo de ligação quando o jornalismo nasceu de uma ligação com o poder dominante?”, pergunta a docente da Universidade do Minho.
A verdade, é que hoje “há processos [mais] complexos” mas “há múltiplas manipulações que continuam a existir”, acrescenta Felisbela Lopes.
Da Gazeta da Restauração chegaram até nós 36 números. Houve edições bimestrais, meses em que não foi publicada, e outros em que foi impresso mais do que um número. O papel era caro e o preço da Gazeta variou de acordo com o número de páginas impressas, fixando-se maioritariamente nas 12 páginas e 6 réis de custo.
Sobre a tiragem, Sousa diz que “tendo em conta as tiragens médias da época” é de admitir que o “número de cópias por número não deverá ter superado as 300. A maioria das cópias circulavam em Lisboa, especialmente na Corte. No entanto, haveria quem comprasse gazetas e outras publicações em Lisboa com o objetivo de as ir lendo de terra em terra, a troco de uma pequena quantia; e outras eram enviadas por mensageiros e correios para outros lugares, por exemplo, para as sedes de bispado, para agentes importantes na administração e defesa do território, para certos conventos”.

[Este artigo foi inicialmente publicado na edição do Expresso Diário de 30 de novembro de 2016]

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